Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho
Como bem já se disse muitas vezes a respeito da vida política, as idas e vindas de opiniões, ações, intenções, acordos e desacordos seguem padrões que lembram os de um verdadeiro jogo, onde cidadãos e mídia funcionam como espectadores numa platéia. Lamentavelmente, em nossa representação política esse jogo de cena que nossos políticos fazem constantemente serve apenas para desestimular os brasileiros para o exercício da plena cidadania, para o acompanhamento dos mandatos e governos, enfim, do controle social que é a base da democracia.
Pois “Jogo de Cena” é exatamente o nome do novo filme do mestre Eduardo Coutinho, diretor de outras obras-primas como Cabra marcado pra morrer, Edifício Master e O fim e o princípio. Lançado agora em novembro, “Jogo de Cena” mostra muito bem como funciona essa mecânica de realidade versus simulação dessa realidade, através de depoimentos reais de mulheres e a representação desses depoimentos por atrizes.
Se a narrativa nos leva a nos sentir traídos nos fazendo emocionar com o relato pungente de uma depoente que resolvera abrir sua dor diante das câmaras, de repente nos apresenta uma outra depoente relatando com a mesma verdade a mesma história. Como não são atrizes célebres, mas uma depoente real trabalhada pelo próprio diretor-entrevistador, talvez com identificações sobre o tema abordado (no caso, as duas narrativas tratam da dor de uma mãe que perde subitamente o filho assassinado), a narrativa nos tira do sério, mobiliza, e nos expõe à trama infernal da própria arte enquanto dimensão supra-real. Mas, acima de tudo, com seu poder transformador da própria realidade.
A pergunta que “Jogo de Cena” levanta é a mesma que pode ser feita em relação à “performance” de nossa classe política: como detectar a diferença entre um depoimento e a interpretação real deste depoimento? Ao nos perguntarmos “O que é verdade e o que é simulação?” nos vemos arrebatados num jogo de cena também político, essência da questão fundamental: “O que é democracia e o que é demagogia?”.
“Jogo de Cena” é a comprovação do que sempre afirmamos aqui na Voz do Cidadão: a cultura brasileira é setorialmente competitiva com qualquer cultura desenvolvida e de primeiro mundo. Mas, lamentavelmente, no setor cultural que reúne e perpassa por todos os demais setores, que é a cultura política propriamente dita, e que estrutura a identidade cultural de um país como um todo, estamos abaixo da crítica.
Vale a pena conferir este clímax da expressão cultural brasileira. Sobretudo num momento em que cabe à cidadania mais consciente a missão histórica de resgatar da miséria cultural a nossa representação política, onde se finge, se engana, simula e dissimula mais do que o mais talentoso dos atores! Onde o jogo de cena é falar para a platéia, mas fazer diferente na hora de votar apenas por interesse privado ou corporativo. Principalmente nos casos das demagogias de cortes de impostos e aumento do custeio do Estado, fiscalização de repasses da União e aprovação de emendas de obras em redutos eleitorais, apoio a privatizações e nomeações de apaniguados em cargos de estatais, atendimento de demandas e privilégios do funcionalismo público, ampliação de políticas assistencialistas e muitas outras, que servem apenas para onerar tributos e setores produtivos.
Prova inconteste de que não distinguimos ainda a função de representação política da função da representação teatral. Assistam e participem deste debate!