Economia política: o Estado como fomentador da desigualdade, por Rodrigo da Silva, do Spotniks

Um texto enorme e grande esclarecedor sobre o Estado, criador de desigualdades. Vale a leitura.
Rodrigo da Silva, editor do Spotniks, 15 h ·

Eu sei, você é desses caras que acham que o Estado tem um papel fundamental para diminuir a nossa desigualdade social.

Mas e se o que acontecesse no Brasil fosse o exato oposto disso?

E se o Estado brasileiro, pelo contrário, contribuísse para aumentar a nossa desigualdade social?

Vamos lá, pense comigo.

Qual é a principal estratégia do governo para combater a pobreza e a desigualdade?

Essa é fácil: são os programas sociais.

Em 2015, o governo federal desembolsou R$ 26,9 bilhões com o maior deles: o Bolsa Família.

Bacana, não? Só tem um problema. O Estado brasileiro não acaba aí.

No mesmo ano, o gasto dos pagadores de impostos só com os funcionários públicos federais foi de R$ 255,3 bilhões, dos quais R$ 151,7 bilhões de salários para funcionários da ativa, R$ 66,2 bilhões de aposentadorias e R$ 37,3 bilhões de pensões.

Repito: só com os funcionários públicos federais.

Você já deve ter entendido.

A remuneração do funcionalismo e a Previdência Social são, com ampla margem, as duas maiores fontes da grana que sai do cofre público para os habitantes desse país: representam quase 95% do valor bruto transferido pelo Estado para as famílias brasileiras.

O que significa dizer que nós não conseguiremos entender como o Estado brasileiro atua para diminuir a desigualdade social sem analisar a nossa Previdência Social. É ela quem toma a maior fatia das transferências de renda promovidas pelos nossos governantes.

Programas sociais como o Bolsa Família são importantes, mas representam apenas uma gota de redistribuição em meio a um mar de ações estatais regressivas, compondo apenas uma fração mínima da renda líquida nacional – menos de 1%.

Por isso, seus impactos sobre a desigualdade são extremamente limitados: -1%.

No Brasil, segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas, o total de funcionários públicos na ativa – nos três níveis de governo (federal, estadual e municipal) e nos três poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário) – passou de 5,8 milhões, em 2001, para quase 9 milhões, em 2014. Esse é um aumento de 54,4% .

Em 14 anos, as despesas com pessoal tiveram um aumento de 127,3%, em valores já corrigidos pela inflação. Nesse tempo, o gasto per capita dos brasileiros para pagar os salários dos nossos funcionários públicos quase dobrou: de R$ 976 para R$ 1.925.

Enquanto no setor público os salários subiram, em média, cerca de 50% nos três níveis de governo entre 2001 e 2014, já descontada a inflação do período, na iniciativa privada esse aumento médio ficou em 21,4%. O aumento real do funcionalismo, na média, foi mais que o dobro do obtido no setor privado.

Não sem motivo, no Brasil, o nível dos salários dos servidores públicos federais é, em média, 67% superior aos do setor privado, mesmo após levar em consideração educação e outras características dos trabalhadores como idade e experiência.

Ou seja: se a maior parte da transferência de renda no Brasil é direcionada para a remuneração do funcionalismo e a Previdência Social, e sai do bolso dos mais pobres para sustentar uma classe de funcionários públicos que recebe, em média, um valor consideravelmente maior que o resto do país, LOGO, o Estado brasileiro não apenas não ajuda a diminuir a desigualdade no país – ele é também fundamental para sustentá-la.

E isso não é papo de nenhum think tankzinho protoneoliberal americano.

Segundo o IPEA, uma fundação pública federal, um terço da desigualdade total em nosso país “pode ser diretamente relacionado às transferências e aos pagamentos feitos pelo Estado aos indivíduos e às famílias, mesmo depois de considerados os efeitos progressivos dos tributos diretos e das contribuições”.

E o IPEA não está sozinho nessa.

Em outro estudo, publicado em dezembro de 2017, é o próprio Ministério da Fazenda quem admite o problema.

Esse é o momento em que a gente abre aspas:

“Apesar de o governo brasileiro transferir para as famílias uma proporção maior da sua renda do que a média dos países da OCDE, o Estado brasileiro não consegue ser tão efetivo na redução da desigualdade de renda como esses países, o que torna o Estado brasileiro um Robin Hood às avessas, que, em vez de tributar os mais ricos para distribuir para os mais pobres, termina tributando a todos para distribuir via transferência monetária, em especial aposentadorias e pensões, para a metade mais rica da população.”

Segundo o estudo, uma mudança na forma de tributação no país – aquilo que você chama de “taxação sobre grandes fortunas” – pode até melhorar nosso cenário em relação à desigualdade, “mas não será suficiente para compensar o efeito pouco distributivo das transferências monetárias do Estado brasileiro, que gasta excessivamente com aposentadorias e pensões, com efeito distributivo concentrador de renda, uma vez que tais gastos”, benefícios pagos com recursos públicos, “são alocados majoritariamente no quintil de renda mais elevado”.

No Brasil, os 20% de domicílios de maior renda per capita recebem mais da metade do pagamento de aposentadorias e pensões pagas pelo Estado.

Vale lembrar que o gasto no Brasil com previdência não é apenas o mais alto entre os países de população jovem, nós também gastamos mais que o dobro de países desenvolvidos com a previdência dos funcionários públicos. Segundo o IPEA, 21% da desigualdade total no Brasil é fruto direto desse modelo concentrador de aposentadorias e pensões. Olha o que diz a instituição:

“Na prática, o Sistema Previdenciário brasileiro está estratificado em pelo menos três grupos. No nível mais baixo, há uma massa de aposentadorias e pensões iguais ao salário mínimo, altamente subsidiadas e pagas a antigos trabalhadores rurais ou urbanos que viveram mais ou menos à margem do mercado de trabalho formal. No meio, há os aposentados do setor privado e a parcela dos servidores públicos inativos cujos benefícios são menores ou iguais ao teto legal do RGPS. No topo, há alguns poucos funcionários públicos cujas aposentadorias e pensões excedem – e muito, em alguns casos – o teto do RGPS. O grupo dos funcionários públicos cujas aposentadorias e pensões excedem o teto representa menos de 5% dos beneficiários, mas se apropria de quase 20% dos recursos distribuídos pela Previdência. Por causa disso, as aposentadorias e pensões dos servidores públicos são extremamente concentradas. Seu coeficiente de concentração é de 0,824, valor 47% maior que a desigualdade de renda no Brasil, que já é alta. Apesar de apenas 4% da população viverem em domicílios beneficiados, os valores transferidos para eles representam 6% da renda disponível nacional e 9% do coeficiente de Gini. Não há nenhuma outra fonte de renda que contribua tanto, proporcionalmente, para a desigualdade.”

Escapou? Eu repito em capslock pra ver se fica mais fácil.

NÃO HÁ NENHUMA OUTRA FONTE DE RENDA QUE CONTRIBUA TANTO, PROPORCIONALMENTE PARA A DESIGUALDADE.

Se você ainda não entendeu, eu posso repetir usando outras palavras.

O Estado brasileiro não colabora para diminuir a desigualdade social. O Estado brasileiro está desenhado para aumentar a nossa desigualdade social. É o que diz o mesmíssimo IPEA:

“Proporcionalmente, o Estado contribui mais para a desigualdade que o mercado de trabalho privado. Como o mercado de trabalho privado responde por mais de 60% da renda disponível, mais que o dobro da renda líquida de origem estatal, ele causa a maior parte da desigualdade. No entanto, como o coeficiente de concentração dos fluxos estatais líquidos de tributos é maior que a desigualdade total e o coeficiente dos rendimentos do trabalho no setor privado é menor, a participação percentual do Estado na desigualdade é maior que sua participação na renda – 32% versus 30%; o inverso ocorre com o mercado de trabalho privado – 58% versus 63%. Se a renda estatal líquida de tributos tivesse um aumento proporcional de 1%, o coeficiente de Gini aumentaria 0,021%. No caso do mercado de trabalho privado, sua contribuição marginal é negativa: um aumento proporcional de 1% diminuiria o Gini em 0,044%.”

Ou seja: só há uma maneira de você REALMENTE lutar contra a desigualdade social. E ela passa necessariamente por uma reforma na previdência.

Nesse momento, muitos dos grupos econômicos privilegiados por esse modelo estão nas ruas protestando, convencendo uma massa de eleitores facilmente influenciável de que os mais pobres são os grandes atingidos pela reforma da previdência.

Você achou realmente que eles não lutariam de todas as formas para manter os seus privilégios?

Nessa batalha vale qualquer coisa.

Por isso, informe-se. Não seja massa de manobra.

Desconfie de quem utiliza soluções fáceis.

Não existe mágica.

Você não defende os mais pobres apenas porque diz que defende os mais pobres. Arruinar as contas públicas e ignorar a matemática é o exato oposto disso. No mundo real você é o maior inimigo dos mais pobres. Você só não sabe disso ainda.

Rodrigo da Silva, editor do Spotniks

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