Brasil é o grande órfão com a morte de Dorival Caymmi

Sexta-feira passada tivemos a Missa de Sétimo Dia do nosso Dorival Caymmi, o último grande compositor popular brasileiro, falecido no Rio de Janeiro, onde morava desde 1938 chegado de Salvador, Bahia, onde nasceu.

Mas morreu apenas o homem. Um pedaço enorme de nossa própria cultura popular musical permanece viva na alma coletiva. Ao enterro físico compareceram os três filhos naturais, músicos também, e uma legião de amigos. E pelo país afora tem saído um verdadeiro féretro simbólico de artigos, crônicas, cartas, memórias, reportagens, menções, homenagens, alusões, citações e milhares de manifestações de desconsolo e saudades, sobretudo na internet. Choram por todo o país todos nós que nos identificamos com Dori, Nana e Danilo, órfãos de sangue de um homem terno e despojado, de um compositor de uma pequena mas inigualável obra que não passava de cem canções, não fosse incensada a sua notória malemolência e brejeirice.

Dorival Caymmi fez muito mais do que obras musicais de rara qualidade. Aparte os grandes ciclos das canções praieiras e dos sambas-canção urbanos, vamos citar aqui apenas um exemplo, que foge dos mesmos. Na década de 40, quando do nascimento de sua filha Nana, Caymmi compôs um dos maiores cânones do nosso cancioneiro popular: Acalanto, na qual todos os brasileiros foram algum dia embalados. E desta obra-prima, pouco se fala, embora muito se cante. Diz a letra que mamãezinha precisa descansar; dorme, anjo, papai vai lhe ninar: boi, boi, boi, boi da cara preta, pega essa menina que tem medo de careta.

Esta última quadra é freqüentemente tomada por mães de todos os brasileiros como cantiga folclórica, de autor desconhecido, tamanha a sua freqüência e resistência na memória musical do país. Afinal, não se conseguiria eternizar essa legenda se ela não correspondesse de maneira tão profunda aos mais escondidos anseios de nosso inconsciente coletivo. Nossa alma, nossa identidade cultural, feita de abandono, irresponsabilidade política, orfandade, desalento e melancolia. Onde sempre caberá uma velha e bonachã figura de pai mítico. Um pai que, enfim, nos proteja dos perigos do mar, da terra, dos céus, mas sobretudo dos perigos de nossos semelhantes, que nos tomam o poder dos governos travestidos de pais demagogos.

E que não nos deixam amadurecer, crescer e nos emancipar, nos deixando irmanados nesta grande orfandade nacional, causa maior do nosso triste deficit de consciência de cidadania. Que pai Dorival Caymmi, Obá de Xangô, vele por nós!

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