Artigo – O castigo real, por J. R. Guzzo

De Veja, em março 21, 2019

José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo,  um jornalista brasileiro, diretor editorial do grupo EXAME e colunista das revistas EXAME e VEJA, integrando ainda o Conselho Editorial da Abril.

O pior dos mundos nesse embate entre Bolsonaro e mídia é a briga de rua na qual se vive hoje; não têm nada de bom, de um lado, e têm tudo de ruim, de outro.

Está na hora, mais uma vez, de falar algumas coisas sobre as guerras sem pausa, sem cavalheiros e sem regras a que o público pode assistir nestes tempos de cólera descontrolada entre os meios de comunicação e o governo do presidente Jair Bolsonaro. É o caso de indagar: será que o leitor já não está enjoado de continuar ouvindo a mesma ladainha? A única opção disponível, enquanto não se consegue uma resposta decente para a pergunta, é ir adiante – não vale fazer de conta que está tudo bem, pois nada está bem. Na verdade, nunca esteve tão mal, e quem paga o preço é o cidadão que sustenta as duas partes, governo e imprensa. Ele teria o direito de ser informado sobre como o seu país está sendo governado. Não é o que acontece. O que lê, ouve ou vê na mídia só está servindo para lhe mostrar que os dois lados não estão aí para explicar, mas para se detestar – e parecem perfeitamente satisfeitos em continuar assim.

É cansativo, e principalmente inútil, ficar queimando válvula na tentativa de explicar quem está com a razão. Para quê? Bolsonaristas e comunicadores acreditam que estão certíssimos, e a última coisa que querem ouvir nesta vida é alguma modalidade de argumento racional. Além disso, tanto faz – as realidades, como sempre, se encarregarão de mostrar quem acertou e quem errou. Nas próximas eleições, daqui a dois e a quatro anos, os eleitores vão tomar a única decisão que realmente importa – vão reeleger as forças do governo, caso achem que Bolsonaro está fazendo um bom trabalho, ou mandar todos para o olho da rua, caso achem que o seu trabalho foi ruim. Essas decisões serão tomadas em cima de resultados concretos, que a população possa perceber; o resto é conversa fiada, neurastenia e pesquisa de opinião. A mídia, do seu lado, estará com a razão se tiver, neste mesmo período, aumentado o seu público pagante; estará errada se continuar perdendo leitores, ouvintes e espectadores.

O pior dos mundos, de qualquer forma, é a briga de rua na qual se vive hoje. É uma dessas situações que não têm nada de bom, de um lado, e têm tudo de ruim, de outro – e coisas assim, como mostra a experiência, têm as melhores perspectivas de continuar exatamente como estão. O que se pode dizer, neste momento, é que o governo faria um grande favor a si próprio, e provavelmente aos governados, se pusesse na cabeça de uma vez por todas que os meios de comunicação deste país odeiam o presidente da República, seus ministros, seus generais, seus programas, seus valores, suas crenças, seus defeitos e suas virtudes; odeiam, sobretudo, que cerca de 60 milhões de eleitores tenham colocado Bolsonaro na Presidência por estarem a favor das posturas que ele defende. Quando a coisa fica assim, não tem mais conserto. Game over. Se Bolsonaro descobrir a cura do câncer, amanhã ou depois, a mídia vai ficar contra; ainda não sabe direito como faria um negócio desses, mas com certeza acabará encontrando um jeito de fazer.

Esse espírito de guerra religiosa que se desenvolveu dentro da mídia é formicida puro. Está na cara, entre outros efeitos tóxicos, que, agindo como têm agido em relação ao governo, os meios de comunicação abrem uma avenida inteirinha para serem acusados de uma coleção completa de pecados mortais. A mãe de todos eles, no fundo, talvez seja a hipocrisia – a tentativa de mostrar que está apenas cumprindo o seu dever de informar e opinar, quando muitas vezes falsifica ambas, informação e opinião, com o propósito de fazer oposição política. Não dá para negar, com base na observação dos fatos, que a imprensa brasileira de hoje está decidida a não mudar de ideia e não mudar de assunto; acha que o governo está sempre errado, em tudo, e que o único interesse do público é ficar ouvindo isso todos os dias. Há, comprovadamente, a divulgação de notícias coladas a suposições sem fundamento, conclusões fantasiosas e interpretações sem pé nem cabeça. Utiliza-se todos os dias o expediente de chamar “especialistas” para dizer, a respeito de qualquer coisa, unicamente aquilo que os jornalistas querem que seja dito. Há as mentiras, enfim – publicadas de propósito ou, então, por negligência, imperícia ou imprudência. Uma criança de 10 anos de idade sabe mentir. Por que raios uma pessoa crescida não mentiria – só porque trabalha na imprensa? Ah, vai. Em todo caso, por um caminho ou por outro, fica evidente a existência de um generalizado, banal e agressivo descaso pela verdade.

O fato, comprovado pela memória digital onde tudo se grava, é que a mídia nacional resolveu participar da campanha eleitoral de 2018 tomando partido contra a candidatura de Bolsonaro – e contra a maioria do público, também. Perdeu as eleições, já que o eleitorado decidiu fazer precisamente o oposto do que os comunicadores queriam que fizesse. A essa altura, em vez de parar um pouco para perguntar se não havia nada a corrigir no roteiro seguido até ali, a imprensa dobrou a aposta. Ficou ainda mais brava do que já estava durante a campanha; desde a eleição, trata o governo Bolsonaro como ilegítimo. Não há sinais de que nada disso vá mudar nos próximos quatro anos.

Um exemplo que talvez ajude a entender melhor as coisas é a convicção, manifestada por Bolsonaro e muitos dos seus seguidores, de que a mídia deveria estar cobrando quem é o mandante da tentativa de assassinato que quase o matou no final da campanha eleitoral. Acham que o seu caso merece tanta atenção, pelo menos, quanto o da vereadora Marielle. O presidente pode esperar sentado; não vai rolar. Na opinião da imprensa, não há mais nada a perguntar sobre o assunto. A polícia já não disse que o criminoso é um débil mental que agiu sozinho? Pois então: qual é a dúvida? Se a polícia falou, está falado. Além disso, há os “laudos técnicos”, que garantem que o homem não deve nem ser julgado, pois não tem culpa nenhuma pelo que fez, coitado. Laudo de peritos, na tradição da Justiça brasileira, é algo que se compra como um pastel de feira, mas tudo bem. O nosso jornalismo investigativo também não é de ferro; não vai sair por aí procurando coisas que não gostaria de encontrar.

É por histórias como essa que o governo se acha na obrigação de dar o troco. Em sua maneira de ver as coisas, Bolsonaro e parte do seu sistema de apoio acham que é indispensável reagir. Não se ganha uma guerra com retiradas, não é mesmo? Além do mais, estão convencidos de que brigar com a imprensa dá cartaz junto ao eleitorado; deu certo na campanha e, portanto, vai dar certo de novo. “O Trump” não faz assim? Etc. etc. etc. Só que nada disso vai resolver a vida de ninguém. A obrigação do governo é governar, e não demonstrar que a imprensa está errada; seu dever é ser aprovado pela população, e não pelos jornalistas. A imprensa é ruim? Problema dela. A questão toda, na verdade, é bem simples. Basta levar em consideração que a imprensa não tem nenhuma obrigação legal de ser boa, ou equilibrada, ou de dizer a verdade; o que está dito na lei, apenas, é que tem de ser livre. Ou se convive com esse princípio, ou não há jogo. Quem tem de julgar a qualidade da mídia, e decidir se vale a pena pagar pelo seu conteúdo, é o público – e o governo pode ter certeza que ele está fazendo exatamente isso. Trata-se de um juiz muito mais cruel do que os bolsonaristas imaginam; quando pune um veículo, vai embora e não volta nunca mais. Não há salvação para quem é condenado.

Bem que o presidente poderia se contentar com isso.

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