Artigo – Do Diário de Comércio de São Paulo – As fakenews e nosso cansaço nacional, por Jorge Maranhão
Nunca vi tanta contorção do jornalismo global para encarar um fato: não dá para fazer campanha de massa contra o fenômeno das fakenews e ao mesmo tempo praticá-las como ficou patente no episódio de a jornalista Miriam Leitão terminar e não terminar o programa de entrevistas ao vivo do candidato Bolsonaro na última sexta-feira (3/08), rebater a afirmação do candidato de que o presidente fundador do Grupo Globo declarou apoio editorial ao regime militar, enquanto vivo, sendo contraditado por seus sucessores jornalistas, depois de morto, de que fora um erro histórico tal apoio.
Resultado: uma tempestade nas redes sociais de cidadãos cumprindo o conselho da campanha das fakenews: pondo em dúvida a correção da correção desastrada da jornalista desmentindo o candidato entrevistado.
O fato é que o Brasil cansou de ser barroco. Não o Brasil analfabeto funcional que vive preso no imaginário barroco sem ter consciência disso. Mas o Brasil letrado, as verdadeiras elites que leem e acompanham o noticiário político dos jornais e televisões. E se manifestam nas redes sociais como nunca dantes.
Se somos 20 perante 200 milhões, não importa. Importa é que passamos a ter consciência de que queremos mudar nossa cultura política. Só não sabemos como, por que não sabemos que ela já começou a mudar exatamente por que aprendemos a nos manifestar nas ruas e nas redes sociais.
E se soubermos mais um pouco, que estivemos cativos da visão de mundo barroca durante tantos séculos, mudaremos a cultura política muito mais rápido.
Porque em todas as sociedades humanas, o que faz mudar a cultura e os costumes é o imaginário social projetado na mídia por verdadeiras elites. Das imagens riscadas nas paredes rochosas das cavernas neolíticas às imagens em movimento alucinante das telas de televisões e computadores.
Se cinco milhões de nós já foram às grandes manifestações de ruas, quatro vezes mais preferiram protestar nas redes sociais.
Se os velhos políticos não nos representam, os que frequentam as investigações da PF e o noticiário criminal da mídia, os novos estão a pipocar em todo o país.
Estamos a mudá-los porque nos cansamos de ser enganados por eles. Cansamos de farsas, pantomimas, paradoxos e exageros.
O barroco era só artes no século XVII e XVIII, sermões, sonetos, pinturas e esculturas sacras e as volutas das arquiteturas das igrejas. Mas foi arrebatando de tal sorte nosso imaginário, que dominou nossos costumes, valores morais, a política e a justiça sem nenhuma resistência cultural de nossas elites.
Conservamos o barroquismo em nossas almas até mesmo quando fomos árcades, românticos e modernos! Se hoje posso identificar a exuberância das narrativas barrocas sobre nossa abundância de recursos naturais, posso identificar a resistência cultural ao Iluminismo, uma vez que nos descobriram passada a Renascença clássica, em pleno vigor do Barroco europeu. E na luta entre as duas culturas, nos coube a prevalência renitente do barroquismo diante de nossa rarefeita razão, nosso incipiente bom senso.
As principais características da cultura barroca brasileira, e para além da expressão da arte que todos consagraram, são as figuras da ambiguidade, para além das do exagero, embora estas últimas não deixem de resultar em ambivalência também.
Para além da hipérbole do ver, a ironia do tratar, a farsa do relatar e o paradoxo do pensar que dominam nosso universo barroco. No ato de ver, no trato com o outro, no relato do feito, no objeto do contrato. Respectivamente. Figuras retóricas que, sobremaneira, distorcem valores.
Como diz a professora de português Cíntia Chagas, do programa Pânico da Jovem Pan, nossa educação política começa com as hiperbólicas promessas dos políticos em campanhas de eleições e termina com os eufemismos de sempre ao descrever o péssimo desempenho de seus governos.
São mais de século, desde o Império, que os cidadãos passaram a ser céticos com relação aos seus representantes.
Se os recursos retóricos do barroco são cativantes e enternecedores nas artes, está a nos cair a ficha de que são desastrosos, nefastos e estarrecedores na moral, na cívica, na justiça e na política!
Todavia, os intérpretes da cultura e da história do país passam ao largo desta questão que considero central! E quando se referem ao barroco, é sempre en passant e limitados à perspectiva estética, artística ou, no máximo, no campo da antropologia cultural.
Sobretudo os doutrinados e doutrinantes progressistas e engajados nas reformas sociais! Não há pensamento liberal brasileiro fora da economia e da política. Como não há conservador fora da caixinha dos costumes.
Pelo menos na tradição de nossos pensadores mais conservadores e liberais como José Bonifácio de Andrade e Silva, Hipólito da Costa, Rui Barbosa, Joaquim Nabuco, Armando de Sales Oliveira, Oliveira Viana, Meira Penna, Roberto Campos e alguns outros citados por Antonio Paim na História do liberalismo brasileiro, que vem de ser relançado pelo LVM Editora e que recomendo.
O que iria neste percurso, J. G. Merquior, morreu muito cedo antes de fazer esta inferência do campo das artes para a cultura política e moral.
Pois eu tenho me dedicado a este estudo, que sairá em livro proximamente, para tentar suprir esta lacuna, embora sem tamanho talento, nem tampouco engenho!
Sérgio Paulo Rouanet ainda se ocupa de nosso irracionalismo cultural mas permanece no campo da filosofia e da crítica da cultura e da arte. Por que, para além do campo da produção cultural das artes e dos costumes, a questão é que estes principais recursos do barroquismo dominam nosso modo de pensar e agir em campos cruciais para o desenvolvimento da civilização brasileira, como a política, a cívica e a moral.
Daí vem a nossa ironia para com a lei, a administração e o poder público, nossa sonsa admissão dos paradoxos como uma fatalidade histórica, nosso gosto pela farsa onde tudo que é pode não parecer que é, ou tudo que não é pode passar a parecer que é.
Parecer ou aparecer, assim é se lhe parece. Nosso compromisso cultural é muito mais com a obscuridade barroca do que com a clareza classicista.
Não é à toa que as principais figuras da retórica barroca como o paradoxo, a ironia, a hipérbole, a metáfora, a metonímia, o eufemismo, a antítese, a ambiguidade, e outras, torcem, retorcem, contorcem e distorcem sentidos basicamente. Pois vivemos o mundo das emoções, não bastasse o locutor de futebol a nos massacrar com “a pura emoção”, “o nome da emoção” e outras disformes pérolas barroquistas.
Seja no ver, seja no pensar, no sentir ou no agir. E a farsa, que era uma versão da comédia clássica com o necessário fim moral para a formação do cidadão, a chamada “moral da estória”, se reduz a mera burla, artimanha, ardil, onde o Lobo Mau se faz passar por Vovozinha, para comer o bobo espectador identificado com Chapeuzinho. O bobo cidadão que nos sentimos diante da política, da justiça e da conduta moral dos oligarcas dominantes, todos espertos, como relata a mídia.
A farsa é nosso gênero predileto. Não é de hoje que trocamos a figura da paródia, onde não se pretende negar a origem da citação, pelo mero pastiche, onde se tenta passar como pensamento próprio uma sentença alheia.
É o caso, por exemplo, do lema do liberalismo americano, “o preço da liberdade é a eterna vigilância”, cuja autoria atribuída tanto ao orador irlandês John Philpot Curran (1750-1817) quanto ao político americano Patrick Henry (1736 – 1799), de tanto usada pelo founding father Thomas Jefferson (1743 – 1826), acabou apropriada como sua pelos seus biógrafos.
No entanto, a sentença foi rapidamente apropriada no Brasil pela UDN – União Democrática Nacional, desde a década de 40, talvez mais pelo desejo sincero de realmente lutar contra a facilidade de usurpação do poder político na República, do que propriamente pelo sucesso em consegui-lo na realidade.
Agora, emblemática e fatídica mesmo é a máxima atribuída a Abraham Lincoln (1809 – 1865) “Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”.
Como prova de que a cultura americana, diferentemente da cultura brasileira, foi bafejada pelo iluminismo reformista de anglicanos e calvinistas, ao contrário de nossa contra-reformista e hegemônica influência barroco-jesuítica, este lema traz em si a ideia clara do bom senso e da razoabilidade, princípios fundadores do classicismo.
No entanto, na linha da farsa como gênero de nossa predileção e de nosso legado barroquista, o que vemos no Brasil, na chamada Constituição Cidadã, é exatamente a ausência total de razoabilidade, de proporção e de bom senso mesmo. Quando se prescreve 74 vezes a palavra “direitos” sem sequer meia dúzia de citações de sua forçosa contrapartida “dever”, observação ferina de um de seus próprios constituintes, o liberal Roberto Campos, em franca minoria na Assembleia denunciando que a “conta não iria fechar”. Como não fecha até hoje.
O que vemos como o maior problema nacional: a ilusão de que o orçamento público é uma vaca leiteira de produção inesgotável, a ideia esquerdista e demagoga por excelência de que o Estado é provedor-mor de todos, como um Leviatã de burras infindas.
Para efeito desta minha tese, é fundamental entendermos por que chegamos a esta falsa conclusão de que todos podem viver de um subsídio, incentivo ou isenção fiscal, uma bolsa disso ou daquilo.
É como se vertêssemos a citação clássica americana para uma tradução cultural brasileira, a máxima e fatídica farsa nacional: “Pode-se enganar a todos durante todo o tempo”.
E, voltando à introdução do tema: por que não conseguimos simplesmente dizer que apoiamos, sim, a revolução de 64, exatamente para nos livrar de uma outra revolução em curso armado pela facção esquerdista? E simplesmente, mudamos de opinião. Uma vez que conhecendo, depois, o quanto se exagerou na intervenção militar.
O que absolutamente podemos falar que foi um erro por parte de quem declarou o apoio, até por que não está mais vivo para poder se pronunciar.
Pois, como tenho dito, é farsa. Muito antes do advento das fakenews, o nome disso sempre foi farsa, como já afirmou Karl Marx com relação à história, que se se repete a primeira vez como tragédia, a segunda se repete como farsa.
Farsa tão farsante no jornalismo quanto chamar farsa de fake. Pois não seria tão mais próprio e sugestivo, em bom português, chamar a campanha mesma contra as fakenews simplesmente de Farsa&fato?