História do Brasil – As barbas do imperador, de Lilia Moritz Schwarcz

Assim que peguei o exemplar em minhas mãos e vi na capa a foto colorizada do imperador d. Pedro II com sua enorme barba branca e olhos azuis, me lembrei da confusão que fazíamos nas aulas de história do Brasil ao tomar a imagem dele como o pai de d. Pedro I, sempre representado ainda jovem e de barba aparada. No entanto, era o contrário por força da iconografia de época. Se este livro é original exatamente por narrar a história do Segundo Reinado pelo fio condutor da iconografia, esta mesma narrativa pode nos conduzir a caminhos diferenciados dependendo de como interpretamos as imagens.

Pior do que órfão cedo, d. Pedro II foi levado a uma paternidade prematura. Pai da pátria e dos brasileiros. Embora segundo na sucessão do pai Pedro I, primeiro imperador nascido na terra brasileira e que tanto amava. Se o pai tinha tendências ao absolutismo, o filho saiu um monarca constitucionalista e cidadão. Poderíamos dizer que republicano, o primeiro cidadão repúblico de que Frei Salvador reclamava desde o século XVI. Ambos extremamente românticos, mas cada um a sua maneira, uma vez que é próprio do estilo fazer coexistir os contrários no mesmo fenômeno. Depois de três séculos de barroquismo nas artes, nas letras e na alta cultura da Colônia, nosso romantismo nada mais foi do que uma continuidade barroquista, plena do gosto pelos paradoxos, hipérboles, circunlóquios, ironias e farsas. Apesar de Pombal ter ensaiado o despotismo esclarecido e expulsados os maiores agentes do Barroco, os jesuítas, o barroquismo permanece na visão de mundo, nos costumes sociais, nas crenças e no pensar, nas letras jurídicas e nas ações políticas. Se Pedro I é o modelo do herói romântico, o Napoleão dos Trópicos, caçador de donzelas, o rei-soldado, Pedro II é o modelo do poeta romântico melancólico, dissimulador de sua vida privada, o monarca-cidadão. Não por força de expressão, pois seguia por gosto o que o rei francês Luiz Felipe de Orleans, seu primo, foi obrigado a fazer: monarca-cidadão que se aliou à burguesia liberal e jurou à Constituição.

Mas ambos barroco-românticos, pois não experimentamos a Renascença nem tampouco o iluminismo por aqui vingou, apesar de figuras como José Bonifácio de Andrade e Irineu Evangelista de Souza. Graças a eles, no entanto, mantivemos o Império unificando metade do continente latino-americano, enquanto a outra metade se fragmentou  em inúmeras republiquetas. Ironia da história ou voluntarismo político de nossos antepassados estadistas? O fato é que Pedro II, de alma romântica melancólica, foi o imperador “das artes e ciências”, atributos que não iriam mais contemplar nenhum de nossos governantes republicanos. Ficamos na alternância enfadonha entre presidentes militares voluntaristas e positivistas e bacharéis barroquistas e demagogos. Exemplo: o texto cita à página 124, as anotações de punho de Pedro II ao receber a dedicatória do poeta Gonçalves de Magalhães na sua obra A Confederação dos tamoios, encomendada pelo próprio imperador, “organizar moralmente a nacionalidade e formar uma elite”. Foi o que passou a vida fazendo e construindo, quer seja no Colégio Pedro II, na Faculdade de Medicina, na Escola de mineralogia de Outro Preto, nas bolsas de estudos que distribuía a compositores como Carlos Gomes e literatos como José de Alencar. Mas sobretudo no IHGB, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, um verdadeiro centro de estudos para a formação da elite política nacional desde 1838.

A pergunta que fica é se tivemos um estadista do porte de Pedro II na sua sucessão republicana. Falar de Getúlio não seria o caso, dado seu viés ditatorial. De Fernando Henrique faria sentido, como um dos mais preparados presidentes, mas o que ficou de seu governo foi o viés social-democrata que resultou na hegemonia esquerdista com o que havia de pior da cultura fisiológica da política brasileira. Desde o Império, não formamos uma elite política de potenciais estadistas. No campo da cultura, então, vivemos na baixa cultura de massa produzida pela mídia de entretenimento mais vulgar, com raras exceções como meia dúzia de canais por assinatura como Globonews, Arte Um, TV Cultura, Curta, TV Brasil. O que falar de movimentos culturais como o modernismo ou o tropicalismo se em meados do século XIX Pedro II já os vivia e celebrava avant la lettre?

Vestido de uma murça de penas de galos-da-serra e de tucanos, nosso imperador cultuava o tropicalismo no indigenismo romântico que formava a identidade nacional, mesmo por causa da chaga escravocrata das oligarquias rurais que acabou lhe derrubando do trono. O império, ao constituir o romantismo indigenista como política cultural de Estado, preteriu o Barroco nas artes, mas não nos demais campos de nossa expressão cultural, como na justiça e na política, nas letras jurídicas e discursivas, e sobretudo na moral e cívica. O modernismo como o último grito do romantismo, legou a Pedro II a paródia de manter a hierarquia dos títulos da nobreza mas de inovar nos nomes que passaram a seguir a toponímia tupi-guarani: barões, condes e marqueses de Quixeramobim, Gravataí, Maranguape, Iguape, Serinhaém, Muriaé, Juruá, Sinimbu, Poconé, Quissamã, Tracunhaém, etc

Não teria sido uma forma sutil de enquadrar a nobreza na realidade do país e não nas referências europeias? Ao mesmo tempo em que se conta que recebia o Rei Ubá nas datas festivas do Paço, como representante legítimo do Rei da África. Assim como condescendia com o sincretismo religioso entre católicos e seguidores da Umbanda, expresso na correspondência de santos católicos com os vários Orixás, como Ogum e São Jorge, Oxossi e São Sebastião, Xangô e São João Batista ou São Francisco, Iemanjá e Nossa Senhora, Iansã e Santa Bárbara etc

O regime político brasileiro de maior duração e estabilidade, com quase 50 anos de vigência, abraçou incondicionalmente os traços barrocos do paradoxo e da farsa. A começar pelo principal protagonista do teatro político, o próprio imperador d. Pedro II, o monarca-cidadão, republicano inconfesso, e o cidadão comum Pedro de Alcântara, como preferia se assinar. Assim como usava o seu Poder Moderador para fazer coexistir e alternar no gabinete de ministros o Partido Conservador e o Partido Liberal. E foi devido às suas viagens internacionais para expor a cultura brasileira e internas para unir as províncias do Império, que o país obteve o reconhecimento e prestígio de potência emergente. Seu posterior banimento, ao contrário, foi um fator decisivo de abalo da credibilidade conquistada por tão invulgar monarca-cidadão, seguramente o mais culto e preparado entre todos os monarcas de sua época. Expressão maior de nosso paradoxo barroquista.

O capítulo das exposições universais demonstra o gênio empreendedor e de liderança cultural do monarca-cidadão. Não foi por acaso que o Brasil se vendeu pelo seu exotismo cultural e natural. Foi uma correta e bem-intencionada percepção de Pedro II que se tratava da grande demanda do romantismo europeu em plena voga do século XIX. Se a torre Eiffel é a Babel do modernismo industrial na exposição de Paris, traz em si o paradoxo da mistura das línguas. Pedro II sabia muito bem que as grandes descobertas tecnológicas da revolução industrial inglesa facilitavam a comunicação e, por isso mesmo, mostrava a diversidade infinita das culturas humanas. O símbolo disso é levar uma vitória-régia, rainha das plantas exóticas da Amazônia, única e inimitável, como atração da exposição de Londres onde reinava a própria em carne e osso.

Tenho para mim que, se tivesse antevisto a instabilidade da República, para o bem do povo a quem servia, Pedro II não teria desistido da monarquia constitucional, em defesa do próprio povo. Pois foi a última vez que poderíamos ver as contas do orçamento público equilibradas. E a despesa da Coroa que era de 5% do orçamento na sua coroação em 1841, reduziu-se a 0,5% no último ano da monarquia, em 1889. Para além da questão militar e religiosa, o maior fator de queda da monarquia foi o paradoxo do Partido Liberal abolicionista que não permitiu a indenização dos proprietários rurais pela libertação dos escravos, o que levou a oligarquia fundiária a destronar o imperador. Nada mais parecido com um saquarema – ou conservador e monarquista – do que um luzia – ou liberal e republicano – no poder, como dizia um político da época e eu completo entre hifens.

A república nos acenou com uma nova política e não nos entregou. Simplesmente por que por trás do modernismo prometido estava o romantismo idealista, a trás do qual, por sua vez, ainda persiste os resquícios do barroquismo na política, na justiça, na moral e nos costumes. Apesar de romântico, Pedro II era consciente disso e tratava de “organizar moralmente a nacionalidade e formar uma elite”. Nada mais clássico, renascentista e sensato. Por que de senso comum e pleno da mais pura razoabilidade. Conclusão que não aparece no livro. As barbas do Imperador ficam, no entanto, a nos dever esta.

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