Cidadão Boilesen

A atabalhoada publicação do decreto do Programa Nacional de Direitos Humanos trouxe de volta ao noticiário – e de uma vezada só – alguns dos temas nacionais mais espinhosos para sociedade brasileira. Para além de “cutucar a ferida”, ao propor legislação no mínimo questionável sobre posse no campo, aborto, concessão de canais de TV e rádio, e dezenas de outros mais, o decreto entra no pantanoso terreno da ditadura e a Lei da Anistia. Como disse o deputado José Aníbal, de São Paulo, trata-se quase de uma mini-constituinte: “um cheese-tudo!”.

O ponto mais controverso é sem dúvida a brecha que o decreto cria para praticamente se revogar a Lei da Anistia, através da criação de uma Comissão Nacional da Verdade, que teria a missão de investigar crimes cometidos durante o regime militar. Quando para isso é que temos os tribunais, sem ter de invadir a competência do Poder Judiciário.

Mas, diante de todo o desastre de viés autoritário que o decreto representa, acreditamos que ele pode ser útil para trazer de volta à sociedade uma série de discussões que ainda temos a enfrentar. Assim como em vários outros países latinoamericanos que passaram por períodos de exceção política, aqui no Brasil também ainda precisamos discutir e entender melhor o que se passou. Afinal, trinta anos depois da anistia, pouco se estabeleceu de consenso sobre a tortura durante o regime militar e muito já se adiou sobre a adoção de uma política pública oficial sobre o complexo tema dos direitos humanos no Brasil. Ou seja, precisamos de mais debate e discussões amplas e menos leis. E com imprensa e produção cultural livre!

Nesse sentido, e na linha de outros documentários recentes sobre o período da ditadura militar, como “Operação Condor” ou “O ano que meus pais saíram de férias”, vale a pena conferir o oportuno documentário “Cidadão Boilesen”, de Chaim Litewski, sobre o dinamarquês naturalizado brasileiro Henning Boilesen. Ao contrário do que pode parecer à primeira vista, o filme – resultado de 15 anos de pesquisa histórica sobre o período – não se limita a investigar a vida e o papel de Boilesen na ditadura brasileira. Trata-se, na verdade, de uma investigação muito mais densa e espinhosa sobre as relações do empresariado civil com os órgãos de repressão do regime militar. Foram mais de 200 consultas a possíveis depoentes dos quais apenas 30% concordaram em se manifestar em entrevistas gravadas sobre um tema tão explosivo.

Premiado no Festival Internacional de Documentários É Tudo Verdade de 2009 e também no Festival do Rio e do Cinesul, “Cidadão Boilesen” mostra com clareza que a famigerada ditadura militar foi, na verdade, uma aliança civil-militar, incentivada e sustentada por setores de peso na sociedade civil, e não apenas alguns poucos empresários ou banqueiros. O jornalista-pesquisador -diretor-autor espera que “Cidadão Boilesen” pelo menos contribua para jogar luz sobre um dos períodos mais tristes e obscuros da história brasileira recente: – Espero que esse documentário possa contribuir para que a sociedade brasileira estude e discuta mais profundamente o tema. Isso já seria uma grande vitória.

Na perspectiva da cidadania, é fundamental o alerta sobre a importância da ação empresarial clara e manifesta no que concerne ao seu poder de realização de programas de apoio e desenvolvimento da consciência e educação política da sociedade, exatamente para que ela não sirva de massa de manobra de políticos demagógicos ou radicais totalitários a exemplo do que tem agitado novamente vários países latinoamericanos. Como diz o ditado, antes prevenir do que remediar.

Por isso, fica no ar a pergunta: – tem mesmo mudado a mentalidade de nosso empresariado de agir politicamente diante de um horizonte menos imediatista e mais estratégico nas suas relações com os governantes e as instituições do Estado? O que a sociedade pode de fato esperar de sua ação política? Esta é a grande questão colocada por este imperdível documentário que nenhum cidadão brasileiro deve perder.

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