Artigo – “Operações proteiformes”, por Carlos U Pozzobon


Conta a mitologia que Perseu foi aprisionado por Menelau por ser o deus grego que podia informar o caminho a seguir no mar depois de Menelau se perder em meio ao nevoeiro e atracar seu navio na ilha de Pharos. Perseu era um deus das profundezas, encarregado de cuidar dos cardumes e tinha a capacidade de guiar os marinheiros e se disfarçar em outros animais. No mundo clássico era representado nas esculturas conduzindo uma carroça puxada por um hipocampo em pleno mar.

Sabendo que Perseu saía do mar para dormitar ao meio dia entre as rochas de uma praia frequentada por focas na Ilha de Pharos, Menelau se disfarçou com peles de focas juntamente com mais três marinheiros escolhidos a dedo com o objetivo de amarrar as mãos de Perseu e forçá-lo a indicar o caminho de volta para a Grécia. Quando Perseu deitou-se e começou a sesta, os amigos se moveram lentamente em sua direção como se fossem focas e conseguiram dominá-lo.

Conta a lenda que não foi fácil: Perseu se transmutou em leão, cobra, pantera e em um monstruoso javali. Mesmo assim, não conseguiu livrar-se das amarras de Menelau, e terminou indicando as tarefas que Menelau deveria seguir para achar o rumo de casa.

Na literatura, o termo ganhou a expressão proteiforme como qualidade daquilo que muda repentinamente, por astúcia ou ilusão.

Pois bem, os brasileiros deveriam usar a expressão a cada vez que uma operação de envergadura mutante dissimulada fosse posta em ação. Porque não há nada mais banal em nossos costumes do que mudar as coisas para fazer com que permaneçam como estão. Assim que a Lava Jato começou a ceifar figuras importantes da política nacional, e enxovalhar a reputação geral dos partidos, estes iniciaram imediatamente a mudança de nome. Os exemplos se multiplicam indefinidamente: a legislação eleitoral muda a cada dois anos. O STF vai e volta em decisões de acordo com o quadro político. Quando a burocracia apresenta uma falha estrutural, a solução vem na manga da camisa: fazer um recadastramento quando o público estiver envolvido, mas se os envolvidos forem os burocratas, a solução é uma reforma administrativa que consiste em mudar de nomes, preservar os cargos existentes, criar novos cargos, aglutinar pessoas – de preferência com novas funções e privilégios – e, depois, permanecer como sempre foi.

A Reforma da Previdência nem sequer chegou a final da tramitação e já temos anunciado que não será definitiva. O novo governo em 2022 deverá refazê-la.

Em períodos de crise, as operações proteiformes chegam ao cume de uma agitação espiritual frenética. Propõe-se mudar tudo, e um novo governo, seja municipal, estadual ou federal, coloca em movimento as mudanças funcionais que vão dar um toque de eficiência ao novo mandato. Mas tudo, naturalmente, continua como dantes: a cultura da mudança que não muda nada inspirou o título A Insondável Matéria do Esquecimento do meu último livro. Porque as mudanças são feitas para encobrir ultrajes, apagar vestígios, eliminar suspeitas, limpar reputações e produzir o esquecimento. E só. Em pouco tempo os nomes serão outros e ninguém mais se lembrará do passado que desaparece com novas siglas. Desde o descobrimento, o Brasil já está na quarta capital federal e, se bobear… cala-te boca.

Por natureza, o brasileiro tem a solução para “distorcer a sombra da vara torta”. Só não sabe corrigir a causa primordial, o húmus de onde provêm as estratégias para que se esqueça do fracasso: a corrupção, que é a matéria viva e pulsante de nossa organização estatal. Esta não morre. Para manter a causa de todos os males é preciso estar mudando tudo, permitindo que os espertalhões sejam capazes de encontrar uma brecha no novo terreno por onde vão se esmerar em novas pilhagens.

Em meu artigo sobre o Sagrado e Profano no século XVII, falando do México, citei Octavio Paz: “Para Paz, a história é uma obsessão entre a grandeza e o esquecimento. Os povos têm uma relação com a história como a mente humana com a censura psíquica: ambos usam o esquecimento para evitar os fatos desagradáveis de seu passado.”

Não temos muita coisa para falar da grandeza do país porque nossos momentos estão tomados pela baixeza. Todo dia tem lama nova para se chafurdar. E o esquecimento tem outros paradoxos: quando alguém revira o passado e aponta as verdades, fruto do trabalho de uns poucos pesquisadores privilegiadíssimos pelo método e perspicácia de perceber do que se compõe “a insondável matéria do esquecimento”; os “esquecidos” não querem saber da verdade. Preferem as novas interpretações, novas narrativas dignificantes e, com ela, o perdão aos cafajestes, que funciona como a censura psíquica capaz de evitar que o passado tenha sido exatamente como o presente, porque ele sempre é louvado ou maldito conforme o interesse do “memorialista” pois, afinal, nada pode ser tão horrível quanto o que hoje está sendo presenciado como a mudança do nome da operação Lava Jato pelo procurador que ainda não tomou posse, mas já tem em mente a solução para a corrupção no país. Agora, a popularíssima conquista social de dezenas de mobilizações, com milhares de pessoas nas ruas, portanto o símbolo nacional de uma época, a chamada Operação Lava Jato, vai mudar de nome. É preciso apagar da mente do povo aquilo que ele passou a usar como identidade coletiva de um momento do país.

A corrupção tem princípios, tem aprendizado, tem sutilezas e muita soberba, e para um país atrapalhado entre a moralidade do altruísmo e a benevolência intrínseca das práticas de aliciamento de cumplicidades, todos os discursos políticos, os editoriais e os opinantes do mundo oficial conduzem os “esquecidos” para o evangelho das virtudes de que basta os homens serem bons para tudo mudar. Angelicalmente.

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