Artigo do DCSP: “Um consenso para o Brasil 2022”, de Jorge Maranhão


O que começávamos a construir de autoestima nacional no final do império se perdeu com o positivismo démodé da república



Em 2022, por conta do bicentenário da nossa independência política mas também de nossa dependência cultural barroquista, temos a oportunidade única de superar nossa encruzilhada civilizatória. Ou seguimos o rumo iluminista da direita, recentemente iniciado, em sua missão de temperar a paixão esquerdista, ou permanecemos no já conhecido caminho dos soi-disant “progressistas”, da soberba e da enganação geral, que já vivemos desde os idos coloniais até as últimas décadas de governos socialistas e socialdemocratas.

Sincronicamente, a humanidade tem sido dividida entre a razão lógica dos economistas posta em voga nos últimos dois séculos e a persuasão retórica dos políticos que nos enganam desde há dois milênios. E, assim como diacronicamente o mundo é dividido entre períodos clássicos iluministas e períodos retóricos de sofistas, o Brasil, que não viveu o iluminismo inaugural da Renascença, tem estado imerso nos labirintos barroquistas desde há quatro séculos.

E porque, desta feita, a tese de meu livro “Destorcer o Brasil” lançada em 2018, de que vivemos no Brasil uma transmutação da resiliente cultura barroquista sobre nossa incipiente experiência iluminista, deve ser retomada em 2022, desta feita sob o gênero mais abrangente da ficção, dirigida para fora do país e veiculada em inglês?

Porque, no ano de nosso bicentenário de independência política, mas de forma alguma de independência cultural, precisamos parar para refletir nossos verdadeiros progressos e nossos persistentes impasses civilizatórios, pautas obrigatórias da mídia internacional, sempre sedenta do original, ainda mais vindo dos trópicos. Quando original se refere não apenas ao extraordinário como também ao que é de origem. Porque marcamos passo numa economia que não passa de um quinto da economia de nossos contemporâneos Estados Unidos, nas últimas décadas, quando já fomos uma economia maior do que a norte-americana na fase imperial? O que nos trava, bloqueia e inibe o recurso do consenso da tradição política de verdadeiras elites?

Participo de vários grupos de discussão de notáveis cidadãos em suas áreas de atuação profissional, mas quando se trata de sua capacidade de estabelecer um mínimo consenso, a coisa degringola em discordâncias ornamentais infindas e querelas sebastianas. Com quatro séculos de hegemonia barroquista sabemos como nenhum outro povo como trocar a lógica de apreensão da realidade pelos golpes sentimentais da retórica barroca. Torcer, retorcer, contorcer e distorcer o real pelo imaginário, a verdade pelo sofisma, a democracia concreta como criação de um povo pela demagogia do governo global imaginário dos organismos multilaterais, identidade nacional por estatuto multicultural, identidade de sexo por identidade de gênero, defesa da vida por condições de vida, justiça por processo e ativismo social, cidadania por vilania, e, sobretudo, cultura por entretenimento.

Retóricas não apenas genuinamente brasileiras como de vários países do ocidente, alguns deles até mesmo insuspeitos pela suas ditas tradições iluministas.

Como nossas elites têm se comportado na república com complexo de vira-lata, como dizia o saudoso Nelson Rodrigues, o que começávamos a construir de autoestima nacional no final do império se perdeu com o positivismo démodé da república. Mas temos como resgatar uma urgente coragem cívica exatamente agora em que o debate público tem sido o mais franco de nossa história. Quando, enfim, podemos cotejar os argumentos conservadores e liberais contra os socialistas e socialdemocratas de que temos sido intoxicados e experimentado nas últimas décadas. Uma oportunidade que não podemos perder.

E me perguntam o que fazer de concreto. Enquanto não juntarmos uma verdadeira elite que condicione apoio, influência e votos a políticos à adesão de uma agenda mínima de reformas institucionais, não mudaremos a hegemonia de uma resiliente mentalidade barroquista sobre nossa incipiente experiência iluminista. Listo aqui dez pontos que podem ser outros desde que haja um mínimo de consenso.

  1. Como por exemplo o consenso sobre a lei de incentivo à cultura que tem sido torcida e distorcida para a concessão de benefícios a artistas do showbiz. Cultura no sentido de alta cultura, de preservação de patrimônio material e imaterial da tradição nacional que não pode ser confundida com mero entretenimento ou artes & espetáculos. Há ou não há um consenso sobre uma mais fina triagem sobre este desvario barroco-esquerdista de compra de consciências de artistas de aluguel por políticos demagogos?
  2. Como por exemplo o consenso sobre o peso paquidérmico da máquina estatal que o corporativismo sindicalista da burocracia pública só fez inchar nas últimas décadas de governos esquerdistas, estendendo o conceito de carreiras típicas de estado, originariamente as forças armadas, a magistratura, promotoria, carreiras da segurança e funcões de controle, fiscalização e gestão, para carreiras típicas liberais como médicos, professores, engenheiros e advogados. Há ou não há consenso sobre a irracionalidade da metonímica retórica barroquista de troca do essencial pelo acessório?
  3. Como por exemplo o consenso de que nossos mandatários fazem o que querem depois de eleitos sem prestar a mínima satisfação a nós, seus mandantes eleitores. Há ou não há consenso sobre a necessidade de limitar poderes, com ampla reforma político-eleitoral, como medidas de adoção de voto livre, voto distrital, cláusula de barreira, revogação de mandatos (recall), entre outras.E efetivá-los sob o mando da cidadania em sua troca barroquista pela distribuição de bolsas disso e daquilo para a narco-dependente vilania brasileira?
  1. Há ou não há consenso sobre a reforma do judiciário brasileiro que torce e distorce a autoridade do mando da lei e troca prerrogativas funcionais por privilegiaturas descabidas, ou o fim da justiça pela exegese teratológica, pelo meio do processo e da chicana garantista, da própria eficácia da lei pelo abuso da lei?
  2. Há ou não há consenso sobre a reforma educacional brasileira que torce e distorce as prioridades de trocar a maior parte do investimento público em educação de base, no ensino fundamental e técnico-profissionalizante, pelo abuso corporativista de mais de 300 universidades públicas, antro de um professorado esquerdista que, em sua grande maioria, prega doutrinação ideológica e revoluções de costumes?
  3. Há ou não há consenso sobre o enviesamento esquerdista da grande parte da mídia de massa, que trocou a imparcialidade da informação, o dever da comunicação pública isenta, como contrapartida essencial da própria concessão pública, pelo ativismo político de um jornalismo militante?
  4. Há ou não consenso sobre o excesso de intervencionismo da política econômica, sob o disfarce de batalhões de agentes reguladores, controladores de qualidade e fiscalizadores de tributos e posturas, sobretudo nas costas dos micro e pequenos empreendedores que simplesmente os exterminam ou limitam em demasia sua capacidade de crescimento e geração de riqueza e empregos?
  5. Há ou não há consenso sobre a troca de políticas efetivas de proteção do meio ambiente, em parceria com nossos agentes econômicos de produtores rurais, artesanais e população indígena, por ações de ativismo ideológico e de caráter deletério com destruição proposital de florestas e extração ilegal de minérios, por interesses mercantis estrangeiros?
  6. Há ou não há consenso sobre políticas nacionais de prevenção primária à saúde pública, sobretudo de ordem sanitária, que deveriam ser objeto de maior parte do orçamento da área, do que a de tratamentos onerosos por força de ações judiciais promovidas por agentes privados de má-fé e por desvios ideológicos de promotores, advogados e juízes contra o interesse público mais abrangente dos cidadãos?
  7. Há ou não há consenso, enfim, de que a infiltração ideológica de modernosas concepções anti-penalistas no meio jurídico nacional vem favorecendo enormemente uma das maiores chagas da doença cultural brasileira, a certeza da impunidade generalizada, sobretudo dos crimes de colarinho branco, e a de que a reincidente prática delituosa compensa o risco dos tortuosos processos judiciais?

Estes são dez pontos que julgo haver um grande consenso nacional por parte de uma verdadeira elite que se proponha a detalhá-los visando uma carta-compromisso por parte de todos os cargos da disputa eleitoral de 2022. Para que realmente venhamos a superar nossa cultura barroquista de transbordamento retórico, para uma cultura de razoabilidade e bom senso iluminista, de deputados estaduais e federais, senadores, governadores e presidente desta, até agora, barroquista, boquirrota e farsante república.

Mestre em filosofia pela UFRJ, dirige o Instituto de Cultura de Cidadania A Voz do Cidadão e autor de “Destorcer o Brasil. De sua cultura de torções, contorções e distorções barroquistas”. Email: jorge@avozdocidadao.com.br




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